terça-feira, 31 de março de 2015

Rima, Palavra, Ação!

Vi ontem um bicho 
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos. 
Quando achava alguma coisa,  
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade. 
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Baneira, dezembro de 1947.

Minha vida é ignorada, dilacerada, não vale uma prata.Na pátria que ataca e me axarca, a disputa aqui nunca se aparta/ 
Eu viro caça na praça (...)
Conecrew Diretoria, grupo de rap, 2011.

Aprender pela vivência, sensibilizar a pele, os sentidos, flexibilizar a percepção: Permitir-se pensar a Literatura atravessada pelas experiências do jovem que sente e lê é fazer da poética uma experiência contemporânea de resistência, do aqui e do agora, social, coletiva e corpórea. Refletindo a leitura como uma ação que não se desvincula do corpo, do hoje e da relação com o outro o projeto RAP É POESIA possui em sua essência um pensamento desejante: queremos escrever-ler-pensar-ouvir-falar junto.

O projeto veio à luz com o poema "O bicho" de Manuel Bandeira. Na ocasião eu e alguns dos meus alunos de Produção Textual líamos o poema para responder à questões interpretativas dos exercícios de Progressão Parcial (procedimento que auxilia alguns alunos na progressão em matérias em que sua dificuldade de aprendizagem é evidenciada pela escola).

Durante a leitura conjunta do poema, no quarto ou quinto verso, o aluno Pedro, do 8º ano interviu com a leveza de quem descobre algo, sorrindo: "Isso dá pra fazer um Rap!". Afirmação natural, franca, evidente, cotidiana e consentida pelos outros alunos, provocou imediatamente uma fissura naquele espaço-tempo escolar, bem como nos meus conceitos cristalizados e previamente metodizados no que diz respeito às intervenções possíveis e por mim imaginadas durante o inicio, o meio e o fim da leitura de um texto literário em sala de aula. 

Ignorar tal afirmação de Pedro e a resposta positiva dos outros alunos, ou mesmo passar despercebida por ela, seria ignorar um Fenômeno que ali acontecia: a identificação imediata do poema pelos jovens com o discurso contemporâneo do rap, discurso cujas origens na década de 1960 se evidencia uma postura de combate e confronto, direcionada a aparelhos de controle produtores de ideologias excludentes, racistas e discriminatórias.

O Rap, sigla de Rythm and Poetry ou Ryme and Poetry é um gênero musical originado por volta da década de 60 na Jamaica, quando sistemas de som eram colocados nas periferias jamaicanas para animar os bailes da época. Nesses bailes, assuntos polêmicos como a violência das favelas e a situação política eram levantados pelos antecedentes dos atuais MCs (Mestres de Cerimônias) durante os bailes. Emigrando aos EUA na década de 1970 em busca de melhores condições sociais, os jovens jamaicanos introduziram nos guetos de Nova York a tradição destes sistemas de som e do canto falado, que logo se espalhou pelo mundo, popularizando-se principalmente entre as minorias sociais por trazer em seu discurso a resistência e a insubmissão ao poder.

Por sua vez, no poema "O Bicho" escrito em 1947 por Manuel Bandeira - ano do período pós-guerra e tempo em que imperava a atmosfera de desesperança frente às atrocidades causadas pelo homem - também identificamos um caráter de resistência e subversão em suas rimas refletindo uma poética que, sobremaneira, evidencia as atrocidades cometidas contra as minorias aos transformar o homem em um "bicho". No texto percebemos claramente sua crítica à ideologia dominante. Crítica esta cuja atualidade, força e sensibilidade lírica, mesmo 60 anos depois, nos toca e fala diretamente ao nosso tempo.

No que tange ao rap e a literatura, promover de modo vital e profundo as conexões entre literatura e o rap  nas sala de aula hoje é afirmar sim o rap em sua literariedade, mas não apenas - é embotar na poética de escritores como Manuel Bandeira o caráter próprio do rap (ritmo e poesia, afinal) e cuja linguagem rítmica e musical contemporânea possibilita a criação de interlocuções francas e efetivas com o ensino da Literatura na Educação de Base. Reflitamos ainda tais conexões a partir da Experiência realizada por mim e os alunos em sala de aula durante a leitura do texto "O Bicho", de Manuel Bandeira.

Fissurado o tempo após a intervenção de Pedro, a energia de todos os alunos se converteu no sentido de transformar o texto de Manuel Bandeira em um rap. Um aplicativo musical no celular de Valentino do 8º ano permitiu que uma batida rítmica de rap fosse instaurada e ouvida por todos para que o intuito fosse concretizado. Adaptamos alguns versos do poema e após algumas experiências sonoras, um rap a partir do poema de Manuel Bandeira foi  criado, mas não apenas: uma atitude, um sentido, uma possibilidade, um caminho, uma troca coletiva, alegre e uma leitura feliz, também veio à luz. A partir dessa experiência, posso afirmar com a certeza do voo que um pássaro novo inaugura no céu, as seguintes palavras de Paulo Freire: "educar é impregnar de sentido o que fazemos a cada instante!".

Luana Costa, Niterói, 2 de abril de 2015.


terça-feira, 17 de março de 2015

O Corpo está Presente!


"A artista está presente", Performance de Marina Abramovic.
Pensar-tensionar as relações entre Literatura, Corpo e Escrita  na sala de aula é uma tarefa bastante árdua e também sensível. Essa equação (Literatura + Corpo + Escrita) por vezes, torna-se um rigoroso desafio aos professores que preocupam-se verdadeiramente em fazer destes conceitos um campo vivo e vibrátil de passagem, fluxo, sensações, ideias, criticidade e criatividade em suas aulas. 
Como professora de Produção Textual da Educação Básica (Ensino Fundamental II - 6º ao 9º ano) e de Literatura (Ensino Médio), elaborarei neste espaço virtual reflexões que se delineiam no infinito dos espaços escolares, e partilharei de experiências em sala, visando incitar questões e indagações muito além de buscar formular respostas. 
Pretendo assim deitar raízes nas inquietações que se desdobram no que tange ao Ensino de Literatura na Educação Básica, de modo a encorajar o professor a mirar sobre suas próprias práticas, pensá-las, questioná-las, aprofundando seus questionamentos, e considerando firmemente a recusa de muitos alunos pela leitura - e em maior ou menor escala, pela leitura literária.
Para tanto, farei-me valer dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) de Língua Portuguesa do III e IV Ciclos do Ensino Fundamental especificamente ao tópico "Produção de Textos Escritos"; bem como dos PCN de Literatura no Ensino Médio. 
Sobremaneira, pensarei os conceitos Literatura, Corpo, Escrita à luz dos filósofos contemporâneos Deleuze e Derrida que se debruçaram de modo intenso, profundo, orgânico e vital, sobre os conceitos inerentes à Literatura e o Corpo. Por fim, através da Filosofia, pensarei também a Experiência como um Acontecimento empírico imprescindível para a construção da imaginação e criatividade literária do educando, bem como do que chamarei aqui de um "Corpo Presente!" do aluno em sala de aula.